Música de fundo

Gosto de música. Gosto tanto, que, ao ouvir, quero dar atenção a ela, me envolver, me deixar sentir, dançar.  Detesto a música de fundo dos consultórios, das academias, dos bares, das lojas, dos quiosques da praia, dos taxis, alguns com aparelhos de tv.  Não se foge mais disso.  O ruído das ondas, da brisa, dos passarinhos, é menos belo do que aquilo que sai das caixas enferrujadas em ambientes variados? 

Quando foi que a multidão deixou de apreciar os sons da natureza? Será que a população teve escolha?  Será que se deu conta do que vem acontecendo?  Ou será tanta a solidão que o “silêncio” assusta? Mas e se por cinco minutos, o sujeito experimentar ouvir as suaves nuances que há no silêncio?  Será possível que este intervalo neutro não o descanse do excesso de estímulos desta vida doida que inventamos?

Nua

Estou nua.  Coloquei um pano em baixo pra me proteger da cadeira porosa, não gosto de minhas intimidades tocando o assento.  Passei a infância sem roupa em Ubatuba, na praia, em Campinas pelas casas em que moramos, na adolescência viajando por países que tratavam a nudez sem moralismos.  Sempre me senti à vontade nos hotéis de jovens com banheiros mistos, nas praias caribenhas, nas saunas árabes, nos jardins holandeses, nas piscinas públicas da França, Alemanha, Dinamarca, em que ninguém se alvoroçava com um peito, firme ou flácido. Estamos sempre todos nus embaixo da roupa.  E com esse calor tropical, Senhor pra quê? Os índios sabiam das coisas, quem teve a ideia de impor nossas vergonhas sobre as liberdades que eles tinham pra nos ensinar? De tempos pra cá, sei lá por que, preciso sempre de um pano por cima – mais um condicionamento bobo que devo abandonar.  É domingo, não há ninguém aqui, não tem filha, nem cão. A filha foi cuidar da própria vida e já faz um ano.  E Isadora, minha cachorra adorada, morreu.  A casa é só minha.

Quando comecei esses escritos (porque isso, fora da novidade que é este blog, nasceu como um livro) meio sem rumo, a ideia era nunca revisar, deixar fluir com erros e a falta de clareza que rola pelo pensamento correr à frente da escrita.  A ideia inicial foi manter o estilão do jeito que saísse, com todos os erros à mostra.  É difícil pra mim pois imensa parte do prazer está em burilar, infinitamente no meu caso.  Sou perfeccionista, e se fosse Eva, a única, se não houvesse alma a me olhar, ainda assim faria meu melhor. Sofro qdo as circunstâncias me obrigam a entregar algo que não meu melhor fruto.  Então, aqui, a proposta me inquietou e eu a burlei.  Voltei, mexi, remexi, e quando vi, havia parado de escrever.  Por conta de reler, me perguntava a cada vez, pra que serve esse despejar de intimidades (há muitas no que seria o livro). E não tenho a resposta!  Mas nunca fui de calcular os passos, eu ando, ainda que não haja um ponto claro onde queira chegar.  A intuição me aponta o Norte.  Nas noites mais escuras ela me ofereceu um sentido sempre incomum para vida.   Escrevo talvez por saber que ando triste como nunca, e por este estado trazer consigo a reflexão.  Talvez pra não cair numa espiral atordoante e destrutiva, eu tenha intuído que deva escavar as sombras em busca de algo escondido.

Desviei.

Voltando às correções que comecei a fazer, viraram um objetivo em si mesmo, porque era menos doído, isso, do que a investigação cirúrgica em território inflamado. Só que a revisão desaguou em um muro de autocríticas.  E parei.

Secretária de cultura

Dia 4

Regina Duarte aceitou o cargo de Secretária.  Ela tem apanhado da classe artística por apoiar um governo de direita. Nas eleições eu defendi seu direito de pensar fora do grupo, de pensar diferente de mim.   Porque senão, onde estamos? Regimes totalitários existem e existiram, de todas as ideologias, da Alemanha nazista à União Soviética.  E este é o mal que se deve combater, sem perder tempo com picuinhas e lados.

Tem algo que não vejo ninguém comentar: vai ser difícil o presidente – que gosta tanto de fritar seus ministros – agir dessa forma com uma secretária de tanto fulgor.   Regina é idolatrada pelos personagens – de todas as ideologias – que encenou ao longo dos 50 anos de carreira.  Tê-la em uma secretaria tão ameaçada, é o melhor cenário que poderíamos desejar.  Vou torcer pra que faça gestão eficiente e arejada, que valorize nossa Cultura mestiça, criativa e original. 

 

Festa selvagem

É verão.  Fica tudo claro e colorido.  Podia ser lindo se não fosse o mar cor de cana por conta do esgoto e da sujeirada que os cidadãos despejam nas águas, e que o governo não limpa e nem limpará dado o volume em que deixaram a imundice chegar.  Podia ser lindo se não fossem as ruas fedorentas.  Se não fossem os maltrapilhos jogados pelas calçadas em condições sub-humanas, se não fossem as mortes dos inocentes, se não fossem…

Houve uma festa selvagem em frente a minha casa há poucos dias.  Um bloco de rua se aglomerou aos milhares na praia mais conhecida do mundo, cartão postal do Rio de Janeiro.  Acharam que Copacabana era um bom lugar pra juntar gente que se regozija na confusão. Havia um formigueiro de pessoas bêbadas, cheirando cocaína, fumando crack, urinando e defecando na calçada. Vendia-se comida de procedência duvidosa, gritavam como se o mundo fosse acabar, pulavam e praticavam sexo ao ar livre.  Pouca gente de fato usufruía dos cantores pagos a preço de ouro, posto que a motivação mais excitante era depredar.  A empresa que organizou tal evento achou boa ideia reutilizar o palco que sobrou do réveillon, sem considerar que este local, em que moradores – na maioria idosos – pagam o maior IPTU do mundo, não oferece condições segura para eventos de natureza selvagem.  Havia patrocinadores de peso, pois não se enganem, esses eventos nada tem a ver com os ingênuos blocos de carnaval, com foliões cantando dançando e brincando alegremente.  Essas aglomerações com chamariz musical, são pretexto para vender marcas de consumo.  Os envolvidos ganham um dinheirão. Lucraram aos baldes e agora, passadas duas semanas as calçadas – onde outrora se andou descalça – continuam coalhadas de vidros quebrados e imundices diversas.  Dizem que não ganharam nada com tal evento, fizeram de boa fé pra alegrar a população.  Sim. E como exatamente, esses “organizadores” conseguiram que a prefeitura autorizasse tal feito?  Foi na conversa apenas?  E nessas conversas, ninguém sugeriu que seria mais seguro situar tal apresentação na Área do Rock n Rio, ou no Sambódromo que o contribuinte custeou para esse objetivo?

Uma bomba de gás perfurou a janela do meu vizinho, morador do 12º andar. A bomba estourou na sala dele onde a mãe de 90 anos se senta pra olhar o movimento da rua.  Por sorte não estava ali naquele instante.  Mas ele estava, e passou 20 minutos em meio a uma massa branca de fumaça, atordoado, sem enxergar nada nem saber se sua casa estaria pegando fogo.

Manchete do jornal hoje: Custo de manutenção e vandalismo tiram bikes e patinetes das ruas.

 

O Analista

Tempos atrás procurei um analista.  Em Santa Tereza, longe a beça.  Eu falava e falava e ele nada.  Sete sessões com o homem mudo e eu desisti.  Não desisti antes porque a casa era linda, com mobiliário dos anos cinquenta, peças art decô selecionadas, um ambiente classudo, meio exótico, e sempre tinha uma música divina tocando na ampla sala de espera.

Tentei mais duas psicas mulheres e tb não deu samba.

Hoje experimentei outro médico. Contei-lhe que estava deprimida e que nunca fui disso.  Desfilei minhas mazelas num corolário de eventos somados nos últimos dez anos.  Ao final ele disse que se tivesse que fazer um diagnóstico, não confirmaria a depressão.  Poxa, nem o médico me acode! E olha que nem falei pra ele do coral.  Só da parte ruim.  Chorei minhas pitangas e ele riu, algumas vezes, eu vi.  Não tenho talento pra tristeza.  Talvez eu tenha que me atirar da ponte pra perceberem que eu não ando lá essas coisas.

Criei um coral – quem canta seus males…

A onda tá braba.  Resolvi criar um coral.  Juntei umas pessoas, estamos procurando um regente, temos o instrumentista, e vamos cantar!  Uma vez por semana aqui em casa.  Quem canta seus males espanta. Sugeri um repertório de músicas melodiosas.  Nelson Gonçalves, Lupicínio Rodrigues, Dalva, Ataulfo Alves, Elizeth, Irmãs Batista, tangos, boleros, sambas canção, hinos memoráveis, tudo aquilo que ficou num canto da memória, e quando se ouve, traz alegria, saudade e conforto.  Cada um sugere uma ou duas canções, escolhemos e cantamos sem compromisso.  Porque quando as vozes se juntam, se houver afinação, sempre fica bonito.  E podemos dançar. É mesmo pra espantar o baixo astral.  E se der caldo a gente se oferece pra cantar na casa das pessoas que estiverem precisando de bom humor.  Por via das dúvidas, a gente leva uma erva e deixa num canto defumando durante a cantoria, que las ai las ai…  O amigo Diogo V. disse que os donos das casas vão acabar juntando dois mais dois, e desconfiar que a deprê deles dá na vista.  Vão se telefonar e perguntar, já cantaram na sua? Não?  Ih… tô pior do que pensava.  Que nada, nós vamos cantar por nós mesmos, porque somos artistas e é assim que lidamos com a tristeza.  E depois se alguém nos quiser, a gente sai por aí.  A arte transfere os males pra prateleira da criação, e dela, misturados com a indignação, a garra, e a certeza de que insistindo rola, o mal sai transformado em música,  livro, quadro, dança. A arte é alquímica.  E acho até que se o coral se aprimorar, podemos passar um chapéu espontâneo, pra render um dinheirinho ao fim das apresentações caseiras. E ainda, se o Coral ficar bom mesmo – supimpa, como diriam nos tempos do samba canção – aí a coisa vira espetáculo e… partimos pros palcos do Brasil!

Esta pessoa que escreve estava triste, macambúzia, desistente, começou a escrever projeções fantasiosas, e pronto já está batendo asas. Viu como funciona?  O peso trancado dentro, vira doença.  Mas esse outro que a gente põe pra fora em prosa ou verso, ou canto, ou quadro, ou dança – vira mágica.